“João Lourenço vai deixar um país à beira do colapso económico e sem paz social”

O ex-presidente angolano foi alvo da atenção do entrevistado d’ O Kwanza. Raúl Tati afirma que, neste momento, José Eduardo dos Santos estará a viver um dos maiores pesadelos da sua vida política. O combate à corrupção merece igualmente a opinião do nosso interlocutor. Raúl Tati sublinha que o “judicialismo revanchista” pode pôr em causa a estabilidade social do País. No final da sua prédica, Raúl Tati diz que a sua “Cabinda-Natal” foi transformada numa “vaca leiteira” que deveria ( ao menos isso, diz ele) ser digna dos melhores cuidados e destaca, por outro lado, que o desenvolvimento da “província mais ao norte do País passa” necessária e obrigatoriamente por uma solução radical e não pela realização de uma “Missa de Acção de Graças”. Ouvimos senhor; perdão, leiam, senhores, os pensamentos do deputado Raúl Tati. À vossa atenção…

Que reflexos terá na vida dos angolanos a baixa do preço do barril de petróleo no mercado mundial?
 
Negativos! Sendo o petróleo a grande commoditie das exportações de Angola e o grande sustentáculo da nossa economia, atendendo ao contexto global em que estamos inseridos, com a baixa dos custos do brent, estou a prever um orçamento rectificativo até meados deste ano. Não será possível avançar até ao final deste ano com o actual OGE por uma questão de pragmatismo. Infelizmente a pandemia o COVID-19 já está sendo um duro golpe contra a estabilização macroeconómica preconizada pelo Executivo. Na vida social prevejo o agravamento dos índices de vulnerabilidade social das populações em todos os domínios de intervenção do Estado.
 
Será que isso poderá servir de pretexto para João Lourenço justificar um eventual incumprimento do seu programa de Governo?
 
É muito frequente nos discursos políticos justificar os fracassos com causas exógenas. Fala-se muito da conjuntura internacional adversa. Em parte é verdade, pois não existem economias independentes. Todas as economias são interdependentes. Só que é preciso dar respaldo também aos problemas internos de sucessivas políticas mal concebidas e mal conseguidas.
 
Como prevê a vida do cidadão-trabalhados nos próximos tempos?
 
Todas as medidas de austeridade económica gizadas nos laboratórios do FMI e Banco Mundial têm um preço muito alto para as populações. Infelizmente é sempre a população mais vulnerável que tem de pagar essa factura. O neoliberalismo económico de marca Ocidental não é uma receita prudente e aceitável para as economias frágeis e pobres como a nossa. O Executivo angolano parece entusiasmado em seguir esse caminho. O resultado será catastrófico.
 
A diversificação da economia não passa dos discursos políticos?
 
Confirmo. A diversificação da economia foi o discurso político escolhido no momento da crise para exorcizar os males e os reflexos negativos do péssimo desempenho da economia angolana. Não passou disso. Mera propaganda!
 
Passou ou continua?
 
Continua o discurso, mas na prática não há sinais de mudança. Dificilmente o Executivo angolano vai libertar-se da sua excessiva dependência do petróleo. No OGE as dotações financeiras para a área produtiva como a agricultura não servem para meia-missa.
 
Qual é a diferença entre o discurso e a prática de João Lourenço em relação ao de José Eduardo dos Santos?
 
Ambos pecam na materialização daquilo que prometem. Mas José Eduardo dos Santos era mais comedido, enquanto o JLO mostra-se mais ambicioso (e talvez irrealista). Prometeu 500 mil empregos para a juventude. Na prática não só não houve uma política de empregabilidade sustentável como se regista a cada dia que passa a despedimentos massivos. O Executivo não consegue pelo menos estancar essa sangria em muitas empresas sobretudo no ramo dos petróleos e da construção civil.
 
O que é que se pode esperar da magistratura de João Lourenço?
 
O Presidente João Lourenço vai deixar um País a beira do colapso económico e sem paz social. Talvez com muitos marimbondos (seus inimigos de estimação) na cadeia, mas com uma população sem pão, sem remédios, sem educação, sem água potável, sem saneamento básico e por consequência com mais morbi-mortalidade por malária… José Eduardo dos Santos teve um consulado longevo de 38 anos. João Lourenço, por imperativo constitucional, só tem mais dois anos. Depois de 2022 não está nada garantido sobre um segundo mandato. Portanto, acho que não devia sonhar muito em políticas de longo prazo. Devia apostar nas prioridades actuais exequíveis neste mandato.
 
E quais são as prioridades actuais?
 
Melhoria das condições de vida dos cidadãos angolanos com políticas educacionais sustentáveis, cuidados primários de saúde, combate às grandes endemias, saneamento básico, aposta na esfera produtiva sobretudo na agricultura. Tudo isso seria exequível com orçamentos mais virados para área social. Infelizmente, o paradigma actual continua a apostar nos órgãos de defesa e segurança.
 
José Eduardo dos Santos queria ser lembrado como “um bom patriota”. Como está a ser lembrado poucos anos depois de ter deixado o poder?
 
Deve estar a viver um dos maiores pesadelos da sua vida política. É um “Deja vu”” pois muitos líderes autocratas terminaram como ele. As acções persecutórias contra a sua família, a retirada do seu rosto na moeda nacional, os autoexílios só provam que José Eduardo dos Santos está defraudado.
 
E como será lembrado João Lourenço?
 
Ainda temos dois anos para o PR João Lourenço. É prematuro dizer como será lembrado. Vamos dar tempo ao tempo.
 
O que lhe ocorre quando ouve a ministra do Ensino Superior?
 
Não me convence! Devia ser uma personalidade com um perfil inspirador, tanto para os professores como para os alunos. Acho que ela faria boa figura no realityshow. Só que aqui estamos a falar da Educação, a chave do sucesso de qualquer País. Portanto, ainda não mostrou as credenciais que lhe valeram o cargo.
 
João Lourenço tem falhado no “casting” de pessoas para ocuparem cargos na sua equipa governamental?
 
E de que maneira! Até nomeia os mesmos corruptos que diz combater. Aconteceu há pouco com a nomeação do governador do Cunene. Autêntico teatro!  Eu até acho que o PR está bem-intencionado. O problema está na equipa de assessoria. Não está a ajudar muito nisso. De resto, as nomeações em Angola para cargos públicos continuam com os vícios antigos do compadrio e dia grupos de interesse que têm muita influência nas escolhas. E dos grupos de interesse…
 
O que tem a dizer sobre o silêncio de João Lourenço sobre a suspeição que paira sobre o seu director de gabinete, Edeltrudes Costa? É, depois de Manuel Vicente, mais um protegido do PR?
 
Fala-se muito de justiça selectiva. Aqui estão alguns exemplos. Alguns são perseguidos de forma implacável, como foi o caso do antigo ministro dos Transportes. Noutros casos denunciados e documentados, João Lourenço prefere dar o benefício da dúvida apostando ainda nessas pessoas.
 
Que ilação se pode tirar disto?
 
Esse judicialismo revanchista pode perturbar a paz social. Em última análise, vai a acarretar custos políticos para o partido governista e para o próprio João Lourenço. Aliás basta ver que o MPLA hoje está em frangalhos.
 
“Judicialismo revanchista?” Quer ser mais explicito e explicativo?
 
Refiro-me a uma espécie de obsessão em punir judicialmente alguns “indesejados” em nome do combate contra a corrupção e impunidade. A agenda política do PR João Lourenço tem aqui a chave-mestra.
 
A luta contra a corrupção está a ter a eficácia que se esperava?
 
Na verdade, ainda está longe da eficácia esperada. Embora hoje vai ficando um pouco mais difícil praticar certos actos nocivos aos interesses do Estado e ficar incólume como no passado recente. Alguma coisa está sendo feita no sentido de se acabar com a impunidade dos intocáveis. Mas ainda há muito por se fazer sobretudo em relação àqueles que o PR está a proteger.
 
É muito comum ouvir-se dizer que o PR foi enganado ou mal informado…
 
Tem acontecido! Os auxiliares nem sempre dizem a verdade sobre os seus pelouros ao Titular do Poder Executivo. No Parlamento o PR viveu momentos desagradáveis com os “cartões amarelos” exibidos pelo Grupo Parlamentar da UNITA, aquando do seu discurso sobre o “Estado da Nação”. O Presidente tinha sido enganado pelos seus homens. Infelizmente não tenho conhecimento de que alguém tenha sido responsabilizado.
 
Será que aconteceu o mesmo em relação à nova logomarca do Executivo que se alega ter sido plagiada?
 
Pode ser, pode não ser! Não tenho pormenores para sustentar qualquer uma das hipóteses.
 
As alegações que se fazem sobre o plágio da nova logomarca não demandaria uma explicação por parte do Chefe da Casa Civil do PR?
 
Talvez aconteça com a pressão da Sociedade Civil. Mas não estou muito seguro que as instituições venham cá dar explicações. O poder em Angola sempre lidou mal com a comunicação ao público sobretudo quando se trata de prestar contas ao Povo, o verdadeiro soberano. Por isso, a nossa sociedade é muito fértil na especulação.
 
Crê que, mais uma vez, o Gabinete de João Lourenço vai fechar-se em copas depois de mais um escândalo flagrante?
 
Para mim não seria uma surpresa!
 
Qual deveria ser o papel do Serviço de Inteligência e Segurança do Estado (SINSE)?
 
É difícil dizer aqui peremptoriamente se o Serviços de Inteligência e Segurança do Estado cumpre ou não o seu papel. Mas há coisas que não são muito normais para a imagem do Estado e do próprio Presidente. Nestes casos é legítimo questionar onde anda o Serviços.
 
O Poder Judicial está mergulhado num manto de suspeição. Por quê?
 
Não é independente, nem credível. Temos juízes e procuradores corruptos ou corruptores pois muitos andam em negócios e outros buscam vantagens materiais ou promoção.
 
Por que diz isso?
 
Conheço o Sistema Judicial angolano e já fui vítima dele.
 
A Sociedade Civil tem posto em causa a idoneidade do presidente do Tribunal Supremo e também do presidente da CNE. A que se deve?
 
Exactamente pelas razões já adiantadas e porque com esse episódio recente com mentiras à mistura fica em causa a idoneidade moral da pessoa escolhida para presidir tão importante órgão para a construção do Estado de Direito. Factos como esse enfraquecem as instituições e retiram a sua credibilidade.
 
E o que é que oposição parlamentar pretende fazer em relação a isso?
 
Não vejo muito as coisas neste prisma partidário. Para mim, é a Sociedade Civil que tem maiores chances de se mobilizar num amplo movimento para exigir reformas profundas no País e não apenas apear do cargo um cidadão rejeitado pelo Povo soberano. Os partidos políticos estão de algum modo manietados constitucionalmente e não arriscam a “linha vermelha”. Isso só legitima a hegemonia do partido governista.
 
As eleições autárquicas vão ou não acontecer?
 
Não vamos ter eleições autárquicas neste ano de 2020. O MPLA precisa de ganhar tempo para se repristinar internamente e na opinião pública angolana. A luta contra a corrupção causou um efeito boomerang. Do ponto de vista Legislativo foram acrescentadas mais três propostas de Lei dentro do pacote autárquico. Entretanto, a Lei sobre a institucionalização das autarquias está longe de ser aprovada. O gradualismo é o grande busílis.
 
Cabinda é um enclave ou um exclave?
 
Nas circunstâncias actuais é mais correcto dizer que é um exclave.
 
Por quê?
 
Há quem erradamente diz que se trata de enclave por estar “encravada” nos dois Congos. É um erro. Cabinda não está dentro de nenhum território estrangeiro como o Lesotho dentro da África do Sul. Tem uma geografia bem distinta dos Congos.
 
E como está a sua Cabinda-natal do ponto de vista social e económico?
 
Não há desenvolvimento. O stablishment fez de Cabinda a sua “vaca leiteira” com as suas políticas extractivas. O resultado é o depauperamento sistemático das populações locais. Se tivessem alguma nesga de sensibilidade e sensatez política dariam melhores cuidados à “vaca leiteira”.
 
O desenvolvimento da sua Cabinda-natal passa por uma “Missa de Acção de Graças”?
 
Já foram feitas muitas que não resultaram. Cabinda clama por soluções mais radicais.
 
“CARTÃO DE VISITAS”
 
Raul Tati nasceu na cidade de Ponta-Negra em 1963. É filho de pais Cabindas. Estudou nos seminários de Cabinda, Luanda, Dalatando e Huambo. Foi ordenado sacerdote em 1991. Co-fundador da Associação Cívica de Cabinda (Mpalabanda). Foi detido, julgado e condenado em 2010 por crimes contra a Segurança do Estado angolano. Entretanto, ficou ilibado em sede de recurso pelo Tribunal Constitucional passados quase doze meses de reclusão.
 
É Doutor em Teologia Moral pela Academia Alfonsiana em Roma (1998) e Doutor em Ciência Política e Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica de Lisboa (2019). É decente universitário e deputado independente à Assembleia Nacional pela bancada da UNITA. É casado desde 2011, ano em que foi dispensado do ministério pela Santa Se.
 
É autor de três livros (“Crise africana e o processo de democratização em Africa”; “Cabinda – Percurso histórico de uma Igreja entre Deus e César”; “Cabinda – Órfã da descolonização do ultramar português”.  O quarto livro, este, está no prelo.
 

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