O avô chileno que lutou para resgatar 7 netos de acampamento de órfãos do Estado Islâmico
Crianças são filhos de
Amanda González e Skråmo, que se juntaram ao grupo extremista em 2014 e
morreram na Síria no início deste ano.
Após semanas de campanha, Patricio González conseguiu.
O chileno radicado
na Suécia e os consulados da Suécia e do Chile confirmaram na terça-feira (6/5)
a transferência para o Iraque de sete crianças entre 1 e 8 anos, todos netos de
González, que estavam no acampamento de Al Hol, construído para abrigar viúvas
e filhos de combatentes do Estado Islâmico (EI) na Síria.
"Sim, podemos
confirmar que as crianças estão em Erbil", disse Mirow Emitslof, porta-voz
do Ministério de Relações Exteriores da Suécia à emissora sueca STV Buster.
Agora, no dia 15, o avô anunciou que conseguiu retornar com as crianças para a
Suécia. "Meus netos estão todos super bem e felizes de estarem de
volta", escreveu no Facebook.
Na Suécia, o caso
é tratado pela imprensa como a transferência dos "filhos do terrorista do
EI Mikael Skråmo".
Nascido na Noruega
e criado em Gotemburgo, segunda maior cidade da Suécia, Skråmo viajou para
Síria a fim de se unir ao Estado Islâmico em 2014 e se tornou um proeminente
propagandista do grupo radical. Em 2015, horrorizou a população ao conclamar
por ataques terroristas em território sueco.
No Chile,
entretanto, a perspectiva sobre o caso é diferente: fala-se dos sete netos de
González, pai de Amanda González, esposa de Skråmo, que também se juntou ao EI.
O casal tinha quatro filhos quando chegou à Síria, diz
o avô. Mais três nasceram em territórios controlados pela organização
extremista.
Quando seus pais
morreram no início deste ano, as sete crianças foram transferidas para o
Nordeste da Síria.
Campanha
Desde então, González
iniciou uma campanha pública por seus netos. Ele diz que, ao contrário de
outros familiares de filhos e filhas de combatentes do EI (a ONU estima que
haja 2,5 mil crianças no acampamento), decidiu tornar sua busca pública.
"Ao longo de
toda minha luta na Suécia, tentei organizar outros avós na mesma situação,
formar grupos. Mas ninguém queria. A maioria desses avós é muçulmana, e eles
têm medo de se unir para reivindicar as crianças, porque temem que isso lhes
cause mais problemas", explica González à BBC News Mundo, serviço da BBC
em espanhol.
"Mas quando
eu fui à televisão e mostrei meu rosto, alguns começaram a se organizar. Hoje
sei que há um grupo de pais e avós que querem resgatar seus netos e já se
reuniram em Estocolmo."
Do Iraque, onde se
estabeleceu em abril, Gonzalez deu entrevistas constantes pedindo ao Chile e à
Suécia que ajudassem na recuperação de seus netos.
A resposta da
Suécia, segundo González, foi evasiva até meados de abril, quando o governo e o
Parlamento chilenos lhe deram apoio.
O chileno relata
que as autoridades suecas então mudaram de atitude e começaram esforços
conjuntos que levaram, finalmente, à transferência das crianças.
"Eu perdi
minha filha, e me culpei. Sempre penso: eu poderia ter tentado resgatá-la,
poderia ter feito alguma coisa, mas o resgate dos meus netos se tornou minha
missão", disse horas antes da partida das crianças.
Embora tenha passado um mês no Iraque, Gonzalez só viu
as crianças uma vez durante três horas.
"Eles estavam
desnutridos, muito magros, mas sei que, se você lhes der tratamento médico,
comida, eles se recuperarão fisicamente", diz.
"Logo vão
ajudá-los a superar o trauma que sofreram: o mais velho viu sua mãe morrer, seu
pai morrer, tem visto muitas coisas que devem ter sido muito ruins,
terríveis", acrescenta.
"Com o tempo,
sem pressa, acredito que vou encontrar momentos apropriados para conversar
sobre o que eles viveram, contar o que aconteceu com seus pais e para onde
foram levados."
Shiyar Ali,
representante da Suécia para o governo autônomo curdo no norte da Síria,
confirmou à SVT que as crianças foram entregues a representantes da Suécia em 7
de maio.
'Minha
filha pagou por seu erro com a vida'
González é músico. Em
1988, aos 19 anos, partiu para a Suécia.
"Naqueles
anos ainda restavam sequelas da ditadura (chilena) e na Suécia havia muita
solidariedade. Eu era politicamente ativo, mas não fui perseguido. Vim para a
Suécia porque queria mudar de ambiente."
Após a separação,
González ficou em Gotemburgo. Sua filha cresceu em Falkenberg.
"Amanda se
converteu ao Islã aos 17 anos, antes de conhecer o marido. Nunca demonstrou
nada para mim, nunca vi que estava se radicalizando. O que notei, e para mim
foi uma dor, foi que deixou o teatro, a música. Ela estudava para ser atriz e
deixou tudo para trás. Mas eu nunca percebi que ela estava se metendo no que se
meteu", diz.
Segundo ele, a
filha tinha 20 anos quando conheceu o marido. "Eles se casaram e foram
morar em Gotemburgo. Lá, conheci meus primeiros dois netos, então quando eu os
vi no acampamento, eles me reconheceram, sabiam que eu era o avô. Os outros me
reconheceram por causa das fotos que Amanda mostrava para eles."
Quatro anos depois do casamento e com quatro filhos, o
casal disse que ia de férias para a Turquia. Em vez disso, ele se alistou no
Estado Islâmico, que naquele ano de 2014 proclamou o califado e anunciou sua
expansão para além dos territórios que já controlava no Iraque e na Síria.
"Eu sentia
muito repúdio da organização. Sempre confrontei Amanda e o marido. Mas ele não
falava muito comigo. Com ela, sempre tive uma relação próxima. Nós nos amávamos
muito, foi minha primeira filha, era muito parecida comigo. Gostava de arte,
música, teatro, escrevia muito", lembra.
González acredita
que sua filha "não participou da barbárie que o EI fazia".
"Se você
começa a pensar, entende que ela estava grávida o tempo todo. Todos os anos ela
engravidava. Saia de uma gravidez e entrava em outra. Ela se dedicava a criar
seus filhos, sete filhos, com um marido que estava sempre ausente. Ela não
participou das práticas do grupo", defende o pai.
"Se você vai
se meter com seus filhos em um país onde há uma guerra bárbara, é porque algo
estranho está acontecendo", diz ele.
Eles se falaram
pela última vez em 30 dezembro de 2018. "Ela me dizia, no final, que eles
não tinham o que comer, que estava muito magra, que a situação era
desesperadora. Que estavam cercados."
'Testemunho para as novas
gerações'
A repatriação de viúvas
ou filhos de combatentes do EI é uma questão complexa na Europa.
Mais de 40 mil
estrangeiros aderiram ao grupo entre 2014 e 2018, quase 5 mil mulheres e mais
de 4,6 mil crianças, de acordo com dados do Centro de Estudos de Radicalização
(ICSR), em Londres.
Em 18 de abril,
Panos Moumtzis, coordenador humanitário regional para a crise na Síria, disse
sobre as crianças em Al Hol: "Estas crianças têm um pai e uma mãe, e esses
pais tinham uma nacionalidade. Portanto, deve-se encontrar uma solução".
González viu os sentimentos de rejeição que seu pedido
de repatriação gera refletidos nas atitudes de algumas autoridades europeias e
nos comentários sobre seu caso.
"Entre esses
comentários mais difíceis, de gente bem crítica, disseram que sou um
desocupado, que vou viver do Estado sueco, que não terei como cuidar das
crianças. Coisas ruins. E perguntam muito como estou me financiando", ele
diz sobre o mês em que passou no Iraque em campanha por seus netos.
"No começo eu
fiz isso com meus próprios recursos. Sou coordenador de projetos culturais e
produzo coisas, intercâmbios, festivais... Quando a imprensa escandinava
começou a se interessar pelo assunto, vendi algumas fotografias. Agora há
pessoas que me ajudam. Amigos, gente que me apoia, gente que eu não conhecia.
Não com grandes somas, mas é suficiente e sobra", explica.
'Filhos
do Estado Islâmico'
Se tivesse sido preso no
ataque final a Baghouz, o genro do chileno teria sido processado na Noruega por
crimes terroristas.
Skråmo até
apareceu com uma das crianças em um de seus vídeos de propaganda terrorista.
"Sim, é meu
neto. O mais velho, é o mais velho. Ele aparece posando com uma pistola de
plástico, parece", acrescenta.
A ideia inicial de
González é que seus netos vivam na Suécia: "Espero que lá encontrem paz, é
o seu país. Mas, se as pessoas não conseguem entender, vamos ver... Porque há
gente que tem medo".
Antes da
transferência, González afirmou à BBC News Mundo que seus netos foram
estigmatizados na Suécia.
"Colocaram um
rótulo neles, temem que sejam violentos. Li que as pessoas dizem que se meus
netos chegassem a escola de seus filhos, eles mudariam os seus de colégio. Isso
é desconhecimento."
Para González,
essa rejeição sinaliza falta de humanidade e tolerância, semelhante à falta de
tolerância do grupo que sua filha e o marido dela representavam.
No Chile, Juan Carlos Godoy, assessor jurídico da família, admitiu a
possibilidade de as crianças se recuperarem no Chile.
'Medo
injustificado'
"Àqueles que têm
medo de meus netos, eu diria que esse medo não se baseia em algo real, que
crianças são crianças, que eles não são mais bonzinhos nem mais malvados do que
os outros. O que quer que aconteça com eles, não haverá relação com a estupidez
na qual seus pais se meteram. O medo de meus netos é injustificado."
Os netos de
González cresceram ou nasceram no meio de um conflito que deixou milhões de
desabrigados e milhares de mortos em meio ao caos e confrontos entre o EI, as
forças do governo Bashar al Assad na Síria e bombardeios aliados dirigidos
pelos Estados Unidos.
Para o avô, seus
netos e as outras crianças são testemunhas dos erros de seus pais e servirão de
alerta para as próximas gerações.
"Quando novos
jovens encontrarem outros líderes que queiram convocá-los para a guerra, essas
crianças vão lembrá-los da dor, da barbárie, do erro que não devem cometer.
Aqui ficará um testemunho", diz.
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